Sentada à beira da cama, em seus pijamas, olhando seus pés em chinelos de algodão. Que dia fúnebre seria aquele? Pela janela, não mais do que uma fresta de luminosidade opaca indicava um dia cinzento.
O rosto oleoso pedia para ser lavado, como se ela tivesse conseguido dormir a noite toda. Os olhos pesados de inchaço, como os pés. Os músculos flácidos do rosto expressando total falta de energia. A boca entreaberta, as sobrancelhas desajeitadas, e os cabelos ainda mais.
Os ombros curvados. O tônus de Clara ao acordar era de um artificialismo impressionante. Dava a impressão de ser uma manhã qualquer, em que se lavaria normalmente, prepararia um café e abriria as cortinas e as janelas. Mas neste dia havia um esforço a mais para o que antes seria o simples cotidiano.
A noite insone tornou-a imune a certos estímulos. O tempo entre o jantar e o desjejum passara para ela em extensos minutos. Ouvia o cricrilejar dos grilos, o farfarolar de alguns ramos nas árvores, desavenças entre gatos e ratos, na rua próxima. Imóvel passou toda a noite, quase sem perceber como. Acompanhou o raiar do dia com serenidade e tratou de erguer-se como de costume, a não ser por aquele modo de fitar os próprios pés calçados no algodão das chinelas. Seu ímpeto era o mesmo de todas as manhãs anteriores: prepararia o café após lavar-se e então iniciaria seu rotineiro cuidado doméstico.
Mas o algodão das chinelas... O rosa desbotado daquelas relíquias que foram presente de seu querido sobrinho faziam-na inadvertidamente se remeter ao rosa vivaz que tingia-os no princípio. Quando do princípio? Princípio do quê?
Aquele rosa em sua lembrança e o branco outrora alvo de sua peça de dormir lhe faziam em prantos. O que fora de suas cores?
Caminhando pela casa, se obrigando a mover-se como se movera por todos esses anos, já não podia deixar de lamentar pelas cores de todas as peças de seu habitat. Os móveis, as cortinas, os tapetes, os armários, os azulejos e até mesmo o pequeno cão, que dormitava encolhido no sofá, todos sem cor.
A vida lhe faltava e ela estivera essa noite inteira percebendo como as horas passam e não param para nos esperar.
Sua vontade era a de ter partido com João. João, seu companheiro de vida e de sempre, fora mais frágil. Essa fragilidade dele, de deixá-la, de entregar-se, de partir de uma vez, a atormentava. Ela, que se sentia tão fraca, que era dependente de seu colo, de seus braços, de sua voz macia a acalmá-la com qualquer bobagem tola.
Nesta noite e em todas que se seguiriam ela não poderia tatear sobre o colchão em busca de sua mão. Não poderia perguntar se ele conseguira dormir desta vez, ou se queria conversar mais um pouco até o sono chegar.
O tom amarelo-acinzentado do dia lhe dizia assim: não haverá João. Não haverá braços, abraços, sorrisos ou ranhetices.
O vazio era este, como se, num primeiro instante, Clara não soube definir o diâmetro do buraco negro. Porque era negro. Sem sentido, encarar os afazeres. Um sem sentido ainda um pouco difuso.
E as malditas chinelas!! O algodão empelotado, o tom desbotado. Do outro lado da cama o pequeno tapete não estava torto, nem virado ou dobrado. Estava intacto. Chinelas de couro não flapejavam ritmicamente até a janela que ela abrira. O cheiro de café não fazia com que passos descessem a escada certeiros. E os ruídos da casa eram altos demais, perto daquele silêncio gritante. Nunca o silêncio a perturbou tanto. E era uma perturbação serena.
Notou que nem o café amargo e nem o pão (amolecido por dentro e crocante por fora) tinham gosto. E lhe ocorreu que talvez eles nunca houvessem tido e que o que ela sentia não era o gosto das coisas que comia, e lembrou que quando criança jurou por “tudo que há de mais sagrado” que morreria se não pudesse comer o algodão-doce na casa de sua prima Nicole, já que o algodão-doce de seu Genésio era “o melhor da cidade”. E era. Pois era o único que celebrava os encontros entre duas grandes amigas, que selava horas de brincadeiras insuportavelmente maravilhosas, de conversas e de descobertas muito importantes. Se a tarde havia sido doce e cor-de-rosa, como poderia Clara voltar para casa sem consumá-la com um novelo de açúcar rosa-choque?! Nem ela, nem tia Dulce permitiriam.
Mas, nas manhãs com João, o café amargo louvava o gosto do fruto de sua terra e das antigas fazendas da família. Além disso, fazia-os acordar de uma só vez! O pãozinho, sempre meio murcho do dia anterior, precisava ser revigorado com um dedinho de manteiga. E o dia começava, os murmúrios se alegravam e conversas se alastravam até a hora de se despedirem para se reencontrarem à tardinha.
Mesmo antes de os meninos se casarem, as refeições, principalmente o café da manhã e o jantar, eram as reuniões sagradas dos Botero, já que “as crianças” não podiam voltar todos os dias para almoçar.
Luiza preparava o feijão desde cedo e esperava que Clara voltasse da escola trazendo os meninos. Lucas só comia o que lhe dava na telha. E Joana, comia um titico, desde menina. João é que era o boa boca da casa. Com o prato mais colorido da mesa, traquejava gracinhas para fazer os meninos provarem novos tipos de verduras e legumes. Clara não os deixava sair da mesa sem um bocadinho de algo verde no estômago.
[...]
O rosto oleoso pedia para ser lavado, como se ela tivesse conseguido dormir a noite toda. Os olhos pesados de inchaço, como os pés. Os músculos flácidos do rosto expressando total falta de energia. A boca entreaberta, as sobrancelhas desajeitadas, e os cabelos ainda mais.
Os ombros curvados. O tônus de Clara ao acordar era de um artificialismo impressionante. Dava a impressão de ser uma manhã qualquer, em que se lavaria normalmente, prepararia um café e abriria as cortinas e as janelas. Mas neste dia havia um esforço a mais para o que antes seria o simples cotidiano.
A noite insone tornou-a imune a certos estímulos. O tempo entre o jantar e o desjejum passara para ela em extensos minutos. Ouvia o cricrilejar dos grilos, o farfarolar de alguns ramos nas árvores, desavenças entre gatos e ratos, na rua próxima.
Mas o algodão das chinelas... O rosa desbotado daquelas relíquias que foram presente de seu querido sobrinho faziam-na inadvertidamente se remeter ao rosa vivaz que tingia-os no princípio. Quando do princípio? Princípio do quê?
Aquele rosa em sua lembrança e o branco outrora alvo de sua peça de dormir lhe faziam em prantos. O que fora de suas cores?
Caminhando pela casa, se obrigando a mover-se como se movera por todos esses anos, já não podia deixar de lamentar pelas cores de todas as peças de seu habitat. Os móveis, as cortinas, os tapetes, os armários, os azulejos e até mesmo o pequeno cão, que dormitava encolhido no sofá, todos sem cor.
A vida lhe faltava e ela estivera essa noite inteira percebendo como as horas passam e não param para nos esperar.
Sua vontade era a de ter partido com João. João, seu companheiro de vida e de sempre, fora mais frágil. Essa fragilidade dele, de deixá-la, de entregar-se, de partir de uma vez, a atormentava. Ela, que se sentia tão fraca, que era dependente de seu colo, de seus braços, de sua voz macia a acalmá-la com qualquer bobagem tola.
Nesta noite e em todas que se seguiriam ela não poderia tatear sobre o colchão em busca de sua mão. Não poderia perguntar se ele conseguira dormir desta vez, ou se queria conversar mais um pouco até o sono chegar.
O tom amarelo-acinzentado do dia lhe dizia assim: não haverá João. Não haverá braços, abraços, sorrisos ou ranhetices.
O vazio era este, como se, num primeiro instante, Clara não soube definir o diâmetro do buraco negro. Porque era negro. Sem sentido, encarar os afazeres. Um sem sentido ainda um pouco difuso.
E as malditas chinelas!! O algodão empelotado, o tom desbotado. Do outro lado da cama o pequeno tapete não estava torto, nem virado ou dobrado. Estava intacto. Chinelas de couro não flapejavam ritmicamente até a janela que ela abrira. O cheiro de café não fazia com que passos descessem a escada certeiros. E os ruídos da casa eram altos demais, perto daquele silêncio gritante. Nunca o silêncio a perturbou tanto. E era uma perturbação serena.
Notou que nem o café amargo e nem o pão (amolecido por dentro e crocante por fora) tinham gosto. E lhe ocorreu que talvez eles nunca houvessem tido e que o que ela sentia não era o gosto das coisas que comia, e lembrou que quando criança jurou por “tudo que há de mais sagrado” que morreria se não pudesse comer o algodão-doce na casa de sua prima Nicole, já que o algodão-doce de seu Genésio era “o melhor da cidade”. E era. Pois era o único que celebrava os encontros entre duas grandes amigas, que selava horas de brincadeiras insuportavelmente maravilhosas, de conversas e de descobertas muito importantes. Se a tarde havia sido doce e cor-de-rosa, como poderia Clara voltar para casa sem consumá-la com um novelo de açúcar rosa-choque?! Nem ela, nem tia Dulce permitiriam.
Mas, nas manhãs com João, o café amargo louvava o gosto do fruto de sua terra e das antigas fazendas da família. Além disso, fazia-os acordar de uma só vez! O pãozinho, sempre meio murcho do dia anterior, precisava ser revigorado com um dedinho de manteiga. E o dia começava, os murmúrios se alegravam e conversas se alastravam até a hora de se despedirem para se reencontrarem à tardinha.
Mesmo antes de os meninos se casarem, as refeições, principalmente o café da manhã e o jantar, eram as reuniões sagradas dos Botero, já que “as crianças” não podiam voltar todos os dias para almoçar.
Luiza preparava o feijão desde cedo e esperava que Clara voltasse da escola trazendo os meninos. Lucas só comia o que lhe dava na telha. E Joana, comia um titico, desde menina. João é que era o boa boca da casa. Com o prato mais colorido da mesa, traquejava gracinhas para fazer os meninos provarem novos tipos de verduras e legumes. Clara não os deixava sair da mesa sem um bocadinho de algo verde no estômago.
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