E então, como se um encontro de muito tempo tivesse se materializado num instante, se olharam, as mãos desajeitadas se tocaram e o que não sabiam dizer, não disseram.
Não disseram nada. A dúvida continuava suspensa, o mar de lágrimas suspenso, o peito afoito e os suspiros suspensos.
O tempo era de esperar. Pelo quê, não sabiam. O tempo era só um jeito de se organizarem por dentro. O tempo e a falta. O tempo e a solidão. Solidão de si ou solidão dos outros? Ela não sabia.
O gosto amargo de uma boca sem beijos, o corpo frio de uma vida sem abraços, sem afagos.
- Minha companhia são os livros. Estou triste de saudades pois terminei um livro ainda ontem. Estávamos nos dando tão bem... E eu agora já o conheço ao cabo e ele se cala quando isso acontece. Agora nos largamos e estou só novamente.
Já era hora de ir pra cama. Ela sabia que deitar simplesmente não a faria dormir. Seu sono há muito não era possível. Não era possível à noite, porque de dia era só o que tinha. A manhã não fazia muito sentido acordada, então dormia. E era assim, dia sim, dia não, dormia. Quando dormia, dormia muito. Tanto que até pensava que não teria mais sono, mas sempre tinha.
Sua cama não era cama, era colchão, direto no chão. Sentia tanto frio e às vezes, por causa do pó, acordava toda entupida, congestionada.
Um bichinho – gato – se enrolada sempre no seu pé, perna ou nas costas quando estava de bruço.
Às vezes, com raiva de todo o tipo de afeto enxotava o bichinho dali trancando-o para fora, sem contato com o quentinho da pele dela.
De vez em quando sonhava tanto em ser outra coisa, que era. Vivia em outra casa, tinha outros tipos de afazeres. Sonhava com luxos e confortos, com outro corpo, outro jeito, outra voz, outro jeito de ver a si própria. Queria uma espécie de paraíso, mas que fazia dela um ser feliz momentaneamente.
Às vezes, dos livros e filmes que via se confundia tanto com alguma personagem que chorava como louca ou sentia sê-la, conhecê-la ou amá-la ou odiá-la. Via-as em fisionomias conhecidas, se arrepiava de imaginar que cruzava uma linha entre aquele mundo e o seu, que em algum nível não eram tão distintos.
Mas esses sonhos eram quando estava acordada. Quando dormia só sonhava com pessoas reais, aquelas que conhecia mesmo, com quem pouco se identificava, pois tinha a sensação estranha de ser única entre todos e excêntrica também. Talvez fosse mesmo, mas sua maneira de lidar com isso exacerbava o que chamamos de saudável.
Fazia redomas sobre suas entranhas. Nunca permitia que vazasse algo seu dali pra fora ou se caía, saia correndo por medo excessivo desse monte de coisas.
Não sentia em público, pois tinha vergonha. Não conseguia conceber que sentir fosse algo natural e até bonito. Queria luzes apagadas, solidão e tempo para sentir escandalosamente. Sentir era um evento egoísta e só seu. Era um ritual grotesco que ela guardava até ela precisar tanto sair que rasgava sua pele, quebrava a redoma posta cuidadosamente e ela corria como uma ladra fugitiva para um canto imperturbável.
Ali tudo acontecia. E o “tudo” era muito por ser acúmulo de pequenos “muitos”. Brotavam lágrimas e o corpo insatisfeito com elas gritava, gemia, chacoalhava, escorria, tamborilava. Às vezes regurgitava, ou tinha cólicas nauseantes. Dores de cabeça vinham depois de algum tempo da crise.
No meio da crise ela sempre se perguntava se haveria um deus (o que em outras ocasiões ela raramente se questionava ou mesmo citava), se isso era algum castigo e invariavelmente pedia clemente que aquilo cessasse por algum tempo – por que sentir a exauria compleamente. Era muita dor, muito esforço. Muita água e um intenso alvoroço.
Ela irrompia quase sempre à noite. Muito raramente à tarde num dia mais cinzento ou frio. Acho que o calor, ainda que não humano, fazia dela uma criatura menos à flor da pele.
Sua felicidade a exauria tanto quando essas angústias intensas. Felicidade que eram momentos de excitação tão intensa que pareciam uma taquicardia. E de certa maneira eram.
Há algum tempo sua visa passava em sua cabeça como um filme e ela queria saber como continuaria e pensar na vida assim facilitava. Ela queria controle, queria rédeas desse turbilhão.
- Mas não é sempre assim, confuso? – a menina da mãe desajeitada lhe perguntou, e ela não tinha resposta. Queria na verdade dizer:
- Não, não! È bem mais simples: é assim assim ou assim assado!
Mas a dizer isso ela preferia não dizer nada, ou dar de ombros, fazer cara de paisagem que doeria menos, faria menos sentido e demandaria menos pensamento.
Porque pensamento cansa, e dói e tudo. E ela queria um tempo. Não sabia se para pensar mais ou menos.
Ela estava acostumada a cuidar de gente e já não sabia se déia continuar cuidando ou se devia começar a pensar na dificílima possibilidade de pedir contato. Como era difícil pra ela aceitar. Difícil conceber a idéia de que talvez precisasse de colo, de ajuda, de cuidados. Via-se tão necessária, mas não julgava precisar de ninguém ou de nada. Achava natural sofrer. Seu estado natural era esse, era o sofrimento, a tristeza, a falta, a angústia, a não necessidade.
Na verdade fazia algum tempo que começara a sentir necessidades. A ela chamava “desejos”. E achava que desejos não eram nobres, mas apenas luxos que a gente inventa. Sonhos para continuar viva.
De repente percebeu que seus “desejos” eram necessidades. Que seus sonhos precisavam de ouvidos, mas tinha deixado de ouvi-los por tanto tempo que corou ao perceber que perdera tantos e deformara tantos outros ao bel prazer das necessidades dos outros, que fraquejava. Lágrimas brotavam automaticamente a cada lembrança esmigalhada. Ela lembrava que ali tivera um sonho, mas o sonho não sabia mais qual era. Lembrava que a sensação que teve ao identificar o sonho era tamanha que na época lhe sufocou, mas agora eram menos que vestígios.
Queria sentir, mas já não sabia como. Estava muda, cega e surda diante de um universo de necessidades.
Agora o tempo que tanto queria era inútil por que não sabia que o que ela procurava tinha ficado no passado, nela mesma de anos anteriores com quem ela não conversava nunca e não tinha mais quase contato algum.
Lembrou da mão desajeitada que fora sua companheira tempos atrás. A primeira vez que tocou aquela mãe era ela inteira desajeitada, tremia até nos nervos, dentes, cabelos. Encontrar. Entre. Será que se cria treino para isso? Ela não tinha.
Como é que se sabe o que se quer na vida? Se não nos explicam as possibilidades! Escolher entre o que? Ninguém sabe orientar. Sabe opinar, ajudar a pensar, mas orientar? Como?! Ninguém está dentro de ninguém! Ninguém sente como ninguém, portanto, estamos sim, cada um por si. Solitários. Cabe a nós decidir o quanto isso nos importa ou incomoda.
Este é o ponto. Este “ser só”. É um abandono incombatível. Esse espaço é o que se tem que para de preencher por que não dá. Mesmo com muitos amigos, mesmo com muito dinheiro e conforto, mesmo casando-se a pessoa que parece que vai completar o buraco com perfeição, dia após dia. Mesmo assim, há um espaço entre as pessoas, entre o “eu” e o mundo, entre o “eu” e a pessoa mais querida e em maior sintonia comigo.
Não disseram nada. A dúvida continuava suspensa, o mar de lágrimas suspenso, o peito afoito e os suspiros suspensos.
O tempo era de esperar. Pelo quê, não sabiam. O tempo era só um jeito de se organizarem por dentro. O tempo e a falta. O tempo e a solidão. Solidão de si ou solidão dos outros? Ela não sabia.
O gosto amargo de uma boca sem beijos, o corpo frio de uma vida sem abraços, sem afagos.
- Minha companhia são os livros. Estou triste de saudades pois terminei um livro ainda ontem. Estávamos nos dando tão bem... E eu agora já o conheço ao cabo e ele se cala quando isso acontece. Agora nos largamos e estou só novamente.
Já era hora de ir pra cama. Ela sabia que deitar simplesmente não a faria dormir. Seu sono há muito não era possível. Não era possível à noite, porque de dia era só o que tinha. A manhã não fazia muito sentido acordada, então dormia. E era assim, dia sim, dia não, dormia. Quando dormia, dormia muito. Tanto que até pensava que não teria mais sono, mas sempre tinha.
Sua cama não era cama, era colchão, direto no chão. Sentia tanto frio e às vezes, por causa do pó, acordava toda entupida, congestionada.
Um bichinho – gato – se enrolada sempre no seu pé, perna ou nas costas quando estava de bruço.
Às vezes, com raiva de todo o tipo de afeto enxotava o bichinho dali trancando-o para fora, sem contato com o quentinho da pele dela.
De vez em quando sonhava tanto em ser outra coisa, que era. Vivia em outra casa, tinha outros tipos de afazeres. Sonhava com luxos e confortos, com outro corpo, outro jeito, outra voz, outro jeito de ver a si própria. Queria uma espécie de paraíso, mas que fazia dela um ser feliz momentaneamente.
Às vezes, dos livros e filmes que via se confundia tanto com alguma personagem que chorava como louca ou sentia sê-la, conhecê-la ou amá-la ou odiá-la. Via-as em fisionomias conhecidas, se arrepiava de imaginar que cruzava uma linha entre aquele mundo e o seu, que em algum nível não eram tão distintos.
Mas esses sonhos eram quando estava acordada. Quando dormia só sonhava com pessoas reais, aquelas que conhecia mesmo, com quem pouco se identificava, pois tinha a sensação estranha de ser única entre todos e excêntrica também. Talvez fosse mesmo, mas sua maneira de lidar com isso exacerbava o que chamamos de saudável.
Fazia redomas sobre suas entranhas. Nunca permitia que vazasse algo seu dali pra fora ou se caía, saia correndo por medo excessivo desse monte de coisas.
Não sentia em público, pois tinha vergonha. Não conseguia conceber que sentir fosse algo natural e até bonito. Queria luzes apagadas, solidão e tempo para sentir escandalosamente. Sentir era um evento egoísta e só seu. Era um ritual grotesco que ela guardava até ela precisar tanto sair que rasgava sua pele, quebrava a redoma posta cuidadosamente e ela corria como uma ladra fugitiva para um canto imperturbável.
Ali tudo acontecia. E o “tudo” era muito por ser acúmulo de pequenos “muitos”. Brotavam lágrimas e o corpo insatisfeito com elas gritava, gemia, chacoalhava, escorria, tamborilava. Às vezes regurgitava, ou tinha cólicas nauseantes. Dores de cabeça vinham depois de algum tempo da crise.
No meio da crise ela sempre se perguntava se haveria um deus (o que em outras ocasiões ela raramente se questionava ou mesmo citava), se isso era algum castigo e invariavelmente pedia clemente que aquilo cessasse por algum tempo – por que sentir a exauria compleamente. Era muita dor, muito esforço. Muita água e um intenso alvoroço.
Ela irrompia quase sempre à noite. Muito raramente à tarde num dia mais cinzento ou frio. Acho que o calor, ainda que não humano, fazia dela uma criatura menos à flor da pele.
Sua felicidade a exauria tanto quando essas angústias intensas. Felicidade que eram momentos de excitação tão intensa que pareciam uma taquicardia. E de certa maneira eram.
Há algum tempo sua visa passava em sua cabeça como um filme e ela queria saber como continuaria e pensar na vida assim facilitava. Ela queria controle, queria rédeas desse turbilhão.
- Mas não é sempre assim, confuso? – a menina da mãe desajeitada lhe perguntou, e ela não tinha resposta. Queria na verdade dizer:
- Não, não! È bem mais simples: é assim assim ou assim assado!
Mas a dizer isso ela preferia não dizer nada, ou dar de ombros, fazer cara de paisagem que doeria menos, faria menos sentido e demandaria menos pensamento.
Porque pensamento cansa, e dói e tudo. E ela queria um tempo. Não sabia se para pensar mais ou menos.
Ela estava acostumada a cuidar de gente e já não sabia se déia continuar cuidando ou se devia começar a pensar na dificílima possibilidade de pedir contato. Como era difícil pra ela aceitar. Difícil conceber a idéia de que talvez precisasse de colo, de ajuda, de cuidados. Via-se tão necessária, mas não julgava precisar de ninguém ou de nada. Achava natural sofrer. Seu estado natural era esse, era o sofrimento, a tristeza, a falta, a angústia, a não necessidade.
Na verdade fazia algum tempo que começara a sentir necessidades. A ela chamava “desejos”. E achava que desejos não eram nobres, mas apenas luxos que a gente inventa. Sonhos para continuar viva.
De repente percebeu que seus “desejos” eram necessidades. Que seus sonhos precisavam de ouvidos, mas tinha deixado de ouvi-los por tanto tempo que corou ao perceber que perdera tantos e deformara tantos outros ao bel prazer das necessidades dos outros, que fraquejava. Lágrimas brotavam automaticamente a cada lembrança esmigalhada. Ela lembrava que ali tivera um sonho, mas o sonho não sabia mais qual era. Lembrava que a sensação que teve ao identificar o sonho era tamanha que na época lhe sufocou, mas agora eram menos que vestígios.
Queria sentir, mas já não sabia como. Estava muda, cega e surda diante de um universo de necessidades.
Agora o tempo que tanto queria era inútil por que não sabia que o que ela procurava tinha ficado no passado, nela mesma de anos anteriores com quem ela não conversava nunca e não tinha mais quase contato algum.
Lembrou da mão desajeitada que fora sua companheira tempos atrás. A primeira vez que tocou aquela mãe era ela inteira desajeitada, tremia até nos nervos, dentes, cabelos. Encontrar. Entre. Será que se cria treino para isso? Ela não tinha.
Como é que se sabe o que se quer na vida? Se não nos explicam as possibilidades! Escolher entre o que? Ninguém sabe orientar. Sabe opinar, ajudar a pensar, mas orientar? Como?! Ninguém está dentro de ninguém! Ninguém sente como ninguém, portanto, estamos sim, cada um por si. Solitários. Cabe a nós decidir o quanto isso nos importa ou incomoda.
Este é o ponto. Este “ser só”. É um abandono incombatível. Esse espaço é o que se tem que para de preencher por que não dá. Mesmo com muitos amigos, mesmo com muito dinheiro e conforto, mesmo casando-se a pessoa que parece que vai completar o buraco com perfeição, dia após dia. Mesmo assim, há um espaço entre as pessoas, entre o “eu” e o mundo, entre o “eu” e a pessoa mais querida e em maior sintonia comigo.
1 comment:
Caralho... a minha sensação é exatamente "como vc tirou isso de dentro de mim?!". Medo disso; medo de como as pessoas podem ser iguais e mesmo assim tem o tal do espaço. Ai..
[mazinha]
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